ANA DURÃO       




DOIS
text (portuguese), 2020

A liberdade e a solidão às vezes baralham-se.
Tenho muito medo que nunca gostem de mim por amor.
Sempre me senti um bocadinho tonta.
Tenho medo que seja óbvio que não sou nada de especial em coisa nenhuma.
Tenho medo que alguém aprenda a gostar de mim e que depois se aperceba que eu não tenho grande coisa para amar.

Há uns meses, quando ainda namorava, tive este sonho:

Eu vivia dentro de casa. Mas essa casa também era eu.
Como a casa era corpo, eu nunca saía.
O namoro eram as visitas.
Era o tempo passado dentro da rotina que se podem fazer a dois.
Eu não dizia grande coisa. Não era preciso porque a casa era eu.

Ele já não vinha tantas vezes.
Não tinha mal, mas deixava-me triste.
Eu achava que havia qualquer coisa de errado na minha casa,
mas ele dizia-me que não era isso, que estava tudo bem.

Ele veio-me visitar, com um ar de ter de ser.

Perguntei-lhe o que se passava:
- O que é que se passa? Já não te sentes bem aqui?
Ele contou-me que visitava outra casa.
Eu fiquei triste, mas não tinha mal.
Ele disse-me que não me queria deixar triste e que, por isso,
continuava a vir a minha casa.
E eu perguntei-lhe sobre a visita de hoje, porque é que veio,
porque é que não gostava de vir?
Com o maior cuidado, respondeu-me:
- Ana, eu não gosto de estar aqui quando chove.
E eu percebi, mesmo não percebendo.

Foi-se embora.
Beijou-me a testa e foi-se embora.
Estava a chover na rua.
Sinto as solas das pantufas molhadas.
Olho para o tecto. Está roto.
Nunca tinha reparado.



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